9. Fugir e Lutar
—Acorde, bela adormecida... —sou
despertada por uma voz, qual conhecia muito bem.
Era ele. Bastian.
Ele me olhava com um sorriso de lagarto, na boca. Seus
olhos refletiam os fogos de artifícios, que em seu âmago ele deveria estar
soltando de felicidade.
—Onde está a minha mãe? —pergunto
sentindo todo o meu pescoço encharcando de
suor.
Tento me erguer, mas meus braços
e pés estavam presos numa espécie de mesa, uma daquelas mesas de tortura
antigas usados na era medieval. Olho ao meu redor procurando por ela. Estávamos
na nave da igreja. Várias velas vermelhas estavam acesas, espalhando por todo o
lugar sagrado a sua luz tênue e indecisa, que tremeluza ao mero sinalo duma
brisa.
As chamas davam as colunas do
lugar um charme ainda mais grotesco. Os bancos, que antes serviram de assentos
aos decotadíssimos fieis, agora estava tombados de cabeça para baixo. Vitrais,
que em algum momento coloriram a igreja com suas ilustrações das passagens bíblicas,
achavam-se espatifados. Inclusive as paredes onde esses vitrais ficavam
emoldurados, estavam parcialmente dominadas pelas heras verdejantes.
Houve um momento em que pude ver
flutuando, nos caibros da igreja, olhos vermelhíssimos e grandes, cujos, deviam
pertencer aos morcegos que haviam se tornado os novos freqüentadores do lugar.
Bastian não havia respondido a
minha pergunta. Ele estava ao meu lado direito, olhando para mim com que me
pareceu um olhar de loucura, obsessivo cheio de desejo.
—Bastian, onde está a minha mãe? —repito
a pergunta.
—Não, se preocupe Tabatha...
Lizzy, traga-a —ordenou com um aceno imperativo de cabeça.
Mal havia percebido a presença
daquela desgraçada que havia me desferido um soco no olho. Aliás, ela e
Beverly, que estava sentada a frente da nave, num banco que elas haviam erguido
do chão.
Que legal...
As comparsas assistiam sem nenhum
pudor o ritual...
—Lizzy, você ouviu o que eu
disse? —pergunta ele pra garota morena que estava em pé, paralisada feito uma
estátua.
—Sim... —responde num fiapo de
voz.
—Então, o que você está
esperando?
O tom de voz de Bastian não era
dos mais carinhosos.
—Temos visitas... —disse ela
apontando a porta que nesse exato momento escancara-se.
De repente, uma corrente de ar
polar entra no recinto sacro, fazendo com que cada músculo de meu corpo arrepiar-se
e depois retesar-se.
—Droga! —pude ouvir Bastian sussurrar.
O que estava acontecendo alguém
chegou?
Podia ouvir passos caminhando em
direção do altar e pude ver Bastian, pondo-se em minha frente, como se ele
quisesse tentar me ocultar de alguém.
—Ora, ora, ora... — reverberou
uma voz aguda e esganiçada de mulher. —Quanto tempo, não Bastian?Quantos anos
que não nos vemos?
— Uns cinqüenta anos? —responde. —Valerie...
—Não. Acho que foi muito mais
tempo... —dizia ela se aproximando cada vez mais do altar.
—Nossa!O tempo passou tão de
pressa... —falou deixando, denunciar em sua voz, certo medo.
De súbito, a mulher estaca e
explode numa gargalhada insuportavelmente aguda.
—Você continua o mesmo cínico de
sempre...
—E você continua tão bela quanto
antes! —galanteia.
—O que você está escondendo atrás
de você, Bastian? —perguntou parada a poucos centímetros de mim.
Ela estava tão perto de mim, que
eu podia vê-la. Ela era uma mulher de seus trinta e poucos anos. Cabelos louros
e cacheados cujos lhe desciam em cascata emoldurando o rosto fino e branquíssimo.
Um busto farto e um corpo delgado, uma autêntica figura para se eternizar em
uma escultura.
Porém, o que mais lhe chamava
atenção eram aqueles olhos azuis claríssimos como o céu e impetuosos como o
oceano em dia de borrasca. Os olhos amendoados que pareciam ter um “Q” de
angelical, também irradiavam um “Q”de infernal.
—Nada... —Bastian respondeu, olhando
de esguelha para mim.
O mais impressionante de toda a
situação é que eu não conseguia exprimir quaisquer palavras. De repente, havia
me calado sem saber bem o motivo.
Queria ter apenas, a minha mãe de
volta...
—Não minta!Sinto o cheiro de
humana!Eu pude sentir esse cheiro de longe... —Valerie disse fungando com o
nariz como um cachorro — Só de pensar minha boca começa a salivar...
—Sinto muito Val, mas ela é só
minha. Eu a encontrei primeiro.
—Mas quem é a mais velha e a mais
forte?Que tem força o suficiente para acabar com você e suas vampiras
vagabundas? —pude ouvir um muxoxo de ira de Lizzy.
Eles me barganhavam tal como um
açougueiro com um fazendeiro.
—Se você quiser podemos fazer um
acordo... —começa Bastian.
—Como seria? —pergunta Valerie
interessada.
—Você pode ficar com a mãe
dela...
—Mais nem morta!Sangue de velho é
horrível...
Não. Bastian ia me pagar se
aquela vampira loira tocasse num só único fio de cabelo da minha mãe. Aquilo
fugia totalmente do acordo que tínhamos. Apesar de não termo acordo algum, já
que a palavra de um vampiro não significa nada.
Tinha que dar um jeito de sair
dali e buscar minha mãe. Vou tentando afrouxar as amarras. Mais do que tudo
tinha que pensar em algo para ganhar tempo.
Então, decido testar algo:
—De onde vocês se conhecem
Bastian? —pergunto.
—Ela não está em transe, não? —pergunta
Valerie indignada.
—Não — respondeu Bastian.
—Ei, dá para vocês responderem a
minha pergunta?
—Onde você encontrou essa
insolente?— pergunta Valerie entrecruzando os braços—Não vai me dizer que você
está apaixonado por ela...?
—Nada haver...
Nada haver mesmo. O que ele
queria mesmo era chupar todo o meu sangue e me deixar oca feito uma múmia
embalsamada.
—Então por que você está aí como
um guarda escoltando-a?
—Cara... Vai embora Valerie, não
temos mais nada...
—Como assim não temos mais nada? —berra
Valerie em indignação.
Enquanto eles discutiam, eu aos
poucos, ia afrouxando as amarras. Faltava muito pouco para que eu conseguisse
me libertar.
—Você é muito do ingrato
sabia?Quando você começou a descobrir os seus poderes como vampiro, quem que
serviu de cicerone nesse mundo?Eu!Quem foi que te ensinou a caçar?Eu! —gritava
escandalizada.
—Eu sei, eu sei e te agradeço,
mas não temos mais nada haver um com o outro. Os sentimentos que nutríamos no
passado, se desfizeram... Restando apenas as boas lembranças...
Valerie e Bastian. Então isso
quer dizer que no passado distante eles tiveram alguma coisa. Algum afeto.
—Boas lembranças apenas... —disse
Valerie numa voz melancólica. —Então,vou sair daqui e te deixar em paz...
Estava quase liberta... Mais uns
segundos e estaria livre...!
Nesse ínterim, Valerie, caminhava
na direção da porta. O sobretudo marrom que ela usava, arrastava-se pelo chão, encobrindo
quase por inteiro a sua bota de salto agulha, qual furava impiedosamente o
mofado e puído carpete verde que revestia o assoalho negro.
—Bastian, posso perguntar uma
coisa? —gritou Valerie à porta da igreja. Ela estava sendo iluminada pelos
raios lunares.
—Pode... — disse Bastian.
Minhas mãos estavam suavam e com
isso facilitou ainda mais com que eu me soltasse. Mãos já libertas ergo-me e
seguindo para meus tornozelos. Fazia
aquilo sem que todos me notassem.
Eles pareciam não perceber.
—Você gostou mais da Luna do que
de mim, não é verdade? —disse Valerie, virando-se e ficando de frente, no mesmo
ponto em que Bastian estava.
Bastian suspirou profundamente e
disse:
—Você sabe que sim...
Valerie começou a rir. Ria como
uma demente, uma louca fugida do hospício. Depois, ela começou a chorar um choro
sentido e doloroso. Por fim, estacou dando um sorriso.
—Ah, Bastian e por acaso eu não
vi como é a sua caça... —disse, ela
começando a correr.
Graças aos céus, eu já havia
conseguido desatar a última amarra que me prendia a mesa.
Mas antes que eu pudesse sair
dela, Bastian grita:
—Valerie, você não pode fazer
isso!Você não pode tocar nela!Ela é minha!
Valerie, contudo, parecia não ter
mais ouvidos. O lado vampiro havia tomado conta dela, cegando-a para razão.
Ela parecia um animal com os
caninos retraídos, olhos vermelhíssimos e amendoados com risco escuro no meio
das pupilas.
Quando percebi, minhas costas
estavam grudadas na mesa. Mãos finas de unhas como garras prendiam fortemente
meus pulsos.
—Vamos, deixe-me ver como você é!
—guinchava ela.
Eu lutava com ela com todas as
minhas forças. Não podia deixar que ela me mordesse. Mas era inútil lutar com
ela montada em cima de mim.
—Me largaaa!! —grito para que ela
saísse de cima de mim.
—Vamos, deixa eu ver o seu rosto
garota!
Nesse instante Bastian interveio:
—Valerie, deixa a garota! Ela não
tem nada haver... —disse tentando puxá-la de cima de mim.
Todavia nada fazia com que ela me
largasse. Ela era como aqueles cachorros irritantes, quando começam a morder
não soltam mais.
Decido desistir e mostrar logo
meu rosto.
—Rá!Então é isso... —disse, ela
saindo de cima de mim— você a quer porque ela parece com a sua falecida Luna...
Assim que ela virou-se para
Bastian eu saio em busca de minha bolsa.
—Não é nada disso! —alega, ele.
—O que você estava pensando em
fazer, então? — ela perguntou encarando Bastian— Transformá-la?
Silêncio da parte de Bastian.
Agora eu entendia!
O filho da mãe devia me achar parecida com essa tal de Luna e com
isso iria me transformar em uma vampira igual ele fez com aquelas duas outras
palermas que estavam escondidas debaixo dos bancos feitos ratos assustados.
Procuro pela minha bolsa. Tinha
que ser rápida.
A encontro no chão, próxima a
mesa. Corro e a pego. Ponho-a nas costas. E corro na direção duma porta que
ficava do lado esquerdo, uma porta grande e totalmente feita de ferro.
Torço a maçaneta e a empurro.
Antes que eu pudesse entrar pude
ouvir Valerie e Bastian discutindo:
—Cala, a sua boca!!Você não tem
nada haver com isso, eu já disse!!! —vociferou Bastian.
—Será? — diz, ela num tom
zombeteiro.
***
Estava num corredor escuro.
Acendo a luz azul do meu celular.
Ela duraria muito tempo, só tinha uma carga. Vou iluminando o meu caminho e
percebo que aquele corredor tinha várias portas dos lados.
Minha mãe só podia estar numa delas...
Vou abrindo uma por uma...
Não, essa daqui não...
Nem essa...
Quando ouvia não muito longe as
vozes de Valerie e Bastian eu puxo a maçaneta duma das últimas portas e entro
nela.
Me viro e encontro ela, minha
mãe.
Ela estava amordaçada e amarrada
por um monte de cordas que lhe davam várias voltas pelo corpo. Encontrava-se em
transe. Parada como uma estátua. Olhando para mais além.
—Mãe, a senhora está bem? —pergunto,
tirando a mordaça da boca dela e aconchegando o seu rosto frio, suado em minhas
mãos.
Ilumino seu pescoço com a luz do
celular.
Nada.
Felizmente.
—Mãe, vou te desamarrar e tirar a
senhora daqui... —digo pondo o celular na minha boca, desatando os nós das
cordas.
Depois ligaria para Tyler. Pedir
a ajuda de Alieta seria inútil ela só iria atrapalhar.
Jogando as cordas dum lado digo a
minha:
—Pronto mãe. Podemos sair
agora...
Quando uma voz esganiçada e louca
na porta anuncia:
—Sei que você está aí, garota... Sinto
seu cheiro...
Droga!
Naquele momento, meu coração
disparou e adrenalina começou a correr pelo meu corpo.
Tinha que pensar e agir rápido.
A porta não estava trancada, logo
ela podia abrir a porta e entrar quando quisesse.
—Se entrar aqui eu explodo sua
cabeça!Tenho um Colt aqui comigo...
—Rá!Só quero ver só... —disse
Valerie girando a maçaneta da e empurrando a porta vagarosamente. Em segundos,
podia-se ver uma mão pálida tentando adentrar no quarto.
Foi então que eu tomei coragem e
correr para porta com a maior velocidade que meus pés permitiam, empurrando-a.
Imediatamente, uma mão decepada
cai, um grito gutural do outro lado da porta e um berro:
—Vou te matar garota!!
Não, você não vai me matar.
Procuro por moveis para fazer de
contrapeso na porta. Ali, na pequena saleta havia uma pequena poltrona, uma
estante e duas cadeiras.
Arrasto, a poltrona e a estante
encostando ambas na parede— fiz tudo sem ajuda da minha mãe que continuava
sentada no chão.
Afasto eu e minha mãe para o
fundo da saleta. Confesso que fora uma árdua tarefa, pois minha mãe não se
movia por nada.
Olho no meu celular.
Ainda tinha carga para fazer uma
ligação pelo menos.
Precisava ligar pra ele.
Seria o único jeito.
—Vamos, Valerie saía daí... —Bastian,
disse em tom imperativo.
—Você quer morrer com ela? Você
viu o que ela fez com a minha mão?Essa vaca
vai morrer! —disse, ela rispidamente.
A voz dela era uma mescla de
raiva e desejo de vingança.
Digito o numero de Tyler.
Nada.
Caixa postal.
Tento outra vez.
Caixa postal.
Tento a última vez.
Idem, caixa postal.
O jeito seria escrever uma
mensagem de texto.Começo a escrever:
Tyler,
Me ajuda eu estou presa,aqui, igreja.
Bastian...
O
celular avisava que estava descarregado.
Teria
que ser enviado daquele jeito.
Pressiono
enviar.
Não
foi. Tento outra vez. Na última tentativa consigo, consigo, porém, o celular se
desliga.
Merda!
—O que você vai fazer? —Bastian,
perguntou a Valerie.
—O que você acha?Arrombar a
porta! —exclamou ela.
Meu
tempo estava acabando...
Olho
minha bolsa e procuro pelo Colt. Reviro a bolsa e encosto em algo frio,de
metal.
Eis
o Colt.
Estava
preparada.
Primeira
investida. Um baque na porta.
Nada
acontece, nenhum móvel se move.
Segunda
investida e um pouco mais forte. Os móveis estremecem e afastam-se um pouco da
porta...
Na
terceira tentativa estaria frita...
Engatilho
as balas na arma.
Posiciono
meu dedo no gatilho. Olho pra minha mãe que parecia uma demente.
—Mãe, desculpe... —digo com
lágrimas turvando meus olhos— Te amo...
Terceira
investida. Dessa vez, Valerie unira todas as forças dos outros dois ataques em
uma só.
Ela
consegue afastar os moveis e derrubar a porta. Uma nuvem densa de poeira é
levantada.
Meus
dedos estavam preparados para atirar.
Bastava
ela se aproximar...
Mas
não conseguia enxergar nada com aquela poeira me turvando a visão.
Apesar
disso eu podia sentir uma respiração. Uma respiração arquejante. Qual estava a
centímetros de meu rosto.
A
nuvem de poeira foi abaixando...
Eu
sabia que ela estava naquela saleta...
Meu
dedo indicador a qualquer momento puxaria o gatilho e...
Quando
não havia mais pó lá estava ela de cócoras, bem perto do meu rosto, com aqueles
olhos vermelhos.
Meu
corpo estremece...
Porém,
não havia tempo para estremecimento. Tinha que puxar o gatilho apenas...
Valerie
me encarava quando puxei o gatilho... E nada aconteceu...
Puxo
de novo o gatilho...
Não,
não podia ser...
Puxo,
de novo e nada...
O
Colt emperrara!
Valerie
agora tinha um sorriso de orelha a orelha no rosto.
Estava
perdida...
CONTINUA