sexta-feira, 24 de janeiro de 2020

O Último Peru

peru de natal ilustração

Num supermercado, duas senhorinhas se aproximam das ilhas de congelados. Como abutres velhos,fitam o único peru que restara do réveillon:
--A minha neta vai amar o peru recheado que farei!!--disse uma delas já encostando no peru.
--Opa.opa, eu vi primeiro. Tira a mão,vamos!
-- Pode até ter visto,mas o nome da senhora,não está escrito nele.A única coisa que está escrito é :peru e não perua...--respondeu debochada a senhorinha com camiseta preta com estampas de limões.
--Dane-se, o peru é meu e ponto. Vi primeiro,logo tenho direito!--rebateu a outra que trajava uma camiseta branca com estampa de maçãs nela.--Antes,perua do que porca selvagem...
--Tadinha...não deve bater bem da cabeça...--sussurrou a de estampa de limão.
Fuzilaram-se com olhares.Se antes queriam o peru,agora era questão de honrar o ego.O ego ferido.O que importava naquele momento era a conquista.Quem ficaria com ele?O peru. Qual das duas sairia como a grande vencedora e esbanjaria o seu ar de superioridade?
--Ok,vamos resolver isso de modo civilizado: impar  ou par?--propôs a de estampa de limões.
--O quê?
--"Ímpar" ou "Par" eu disse,tá surda?
--Par.--respondeu a de estampa de maçã.
--Ímpar --confirmou a outra.-- Um,dois ,três e.... já!!!
Antes que a senhora do ímpar pudesse apresentar os dedos. A senhorinha do par aproximou-se da ilha de congelados e agarrou o peru como se fosse uma jogadora de rugby e saiu correndo em direção ao caixa mais próximo.
***
Dona Valda estava cansada. Quem a vesse ali encostada com o rosto no cabo do esfregão pensaria que levava uma vida difícil.Muito difícil e sofrida. Mas na verdade tudo era mentira.Encenação. Enchera a cara durante o ano-novo e não se aguentava em pé. Era uma morta-viva de George Romero. Mas tudo mudara quando uma senhora com camiseta de estampa de maçã viera correndo em sua direção como um búfalo ensandecido. Bem no momento em que havia ensopado o chão com o seu esfregão...
***
Bette era o nome da senhora que vestia a camiseta branca de estampa de maçãs.Agarrada ao peru como uma jogadora de futebol americano,ela corria em direção ao caixa mais próximo. Corria numa velocidade moderada,pois era o que a idade lhe permitia. Mas mesmo assim estava distante de Angélica a senhora que vestia a camiseta de estampa de limões. Em algum canto de sua mente ,fora despertado um instinto ancestral ,cujo qual lhe dizia : comida conquistada levar já pra casa,comida conquistada levar já pra casa,conquistada levar já pra casa... Tal frase ecoava de tal maneira em sua mente que esta se tornara alheia a tudo ao seu redor.
Tão alheia que não percebera o piso que Dona Valda alagava com o esfregão.
***
"Quem aquela filha da puta pensa que é?" pensou Angélica correndo atrás de Bette a velha de camiseta de maçã."Isso que dá ser uma mulher honesta..."
Estava a poucos centímetros de pegar Bette pela camiseta quando tudo acontecera.
***
A coisa fora rápida. Bette sem perceber escorregou no piso molhado e caiu de bunda no chão.No entanto,sem largar do peru. Em seguida,veio Angélica que na sanha de capturar a sua inimiga e conquistar o tão sonhado peru, não percebera também que o piso estava molhado.Uma caindo por cima da outra. Dalva despertou do torpor alcoólico e tentou acudir a ambas,mas acabou caindo também. Foi como uma avalanche de corpos da terceira idade.
***
-- Esse peru é meu!--disse Angélica agarrando o peru.
-- Nunca!--respondeu Bette pegando da outra metade do peru, com força.
E ficaram nesse cabo de guerra até que... até que o peru rasgou-se ao meio como uma folha de papel.
E num passe de mágica, como se tivessem saído dum transe,quebrado algum feitiço. O interesse pelo alimento perde-se.Esvai-se. 
Jogam os pedaços do que  momentos atrás fora um peru para os lados , levantam-se(com certa dificuldade , como um robô que precisasse ser azeitado) e retomam as suas vidas.
Enquanto Dona Dalva balançando a cabeça diz:
--Mais sujeira,mais sujeira... O vida,o vida,o vida amarga...